É comum hoje em rodas de capoeira, eventos ou em qualquer outro tipo de apresentação que envolva cultura popular haver manifestações como maculelê, samba de roda, puxada de rede, entre outros. O que poucos sabem é que isso só é possível devido a genialidade de EMILIA BIANCARDI (Foto 1), a maior ETNOMUSICÓLOGA da Bahia e uma das maiores do Brasil.
Nascida em Salvador a 80 anos, no dia 08 de abril, viveu sua infância e parte da adolescência em Vitória da Conquista, interior do Estado da Bahia. Lá, teve os primeiros contatos com os folguedos populares do interior, como o SAMBA DE RODA e TERNO DE REIS, que eram muito comuns em reuniões de famílias na cidade.
Com a morte do pai, sua mãe veio para Salvador e ela passa a estudar música, tornando-se pianista como sua mãe. Mais tarde é designada para ser professora de música e canto orfeônico no Instituto de Educação Isaías Alves (Iceia). Junto com outras meninas cria o grupo LES GIRLS, primeira banda de música feminina da Bahia, em 1958, aonde ela se destacava na bateria.
Devido ao sucesso da banda ela recebeu vários convites para apresentações, mas naquele momento já nutria há um tempo a ideia de criar uma produção cênica, que seria uma das maiores revoluções culturais do país, ela estava decidida a trazer a cultura popular brasileira para o palco. Seu embrião foi o CONJUNTO FOLCLÓRICO DA INSPETORIA DE EDUCAÇÃO DA BAHIA e sua conselheira ninguém menos que a maior folclorista baiana da época e sua professora e mentora, HILDEGARDES VIANA, que a recomendou antes de iniciar os ensaios buscar os detentores daquela cultura, os velhos mestres. E assim ela fez.
Na CAPOEIRA, buscou mestres de renome como PASTINHA, que ia dar aula de berimbau e ginga na sua casa, posteriormente passariam pelo grupo outros mestres famosos como João Grande, Gato, Bira Acordeon, Canjiquinha, Caiçara, Camisa Roxa, Lua Rasta, Pelé da Bomba, Antônio Diabo, Amém e vários outros. No MACULELÊ, procurou Mestre Popó de Santo Amaro e depois teve seu filho no grupo Mestre Zezinho. No SAMBA DE RODA, recebeu informações de D. Coleta de Omolu. E na PUXADA DE REDE, mestre Canapún a orientou como musicar o ritual e depois o teve também como componente do grupo.
Ciente de que não havia uma TRADIÇÃO ORAL na passagem da ritualidade das manifestações passou a classificar o grupo como PARAFOLCLÓRICO e o chamou de VIVA BAHIA, o primeiro grupo a divulgar a cultura brasileira em uma forma estilizada nos palcos do Brasil e todo mundo. Posteriormente também resolveu incluir o CANDOMBLÉ, tendo MÃE MENININHA como fonte de pesquisa e a explicando o que poderia ser passado ou não, e como apoio teve entre seus músicos o considerado maior alabê do Gantois, VADINHO BOCA DE FERRAMENTA, que acompanhou o grupo em vários países. O grupo estreou um espetáculo em 1963, na Semana de Música.
O seu sucesso foi imediato nunca um espetáculo de dança e música tinha trago tantos elementos da cultura nacional e ainda ajudou a desmitificar o preconceito do candomblé e da capoeira. Além do território nacional, apresentaram-se na América do Sul, na Europa (como o Olympia, em Paris), no MADISON SQUARE GARDEN (Nova York), Tunísia, Pérsia (atual Irã). Seu grupo tornou-se um dos maiores divulgadores da cultura brasileira no exterior e era muito comum o pedido de capoeiristas para não voltarem ao Brasil, pois queriam tentar a vida no exterior, dando aulas de capoeira e ensinando a cultura brasileira, em um ato pioneiro e desbravador.
Vários outros grupos de cultura foram criados a partir dos ensinamentos e vivências dentro do “Viva Bahia” como o Grupo Aberrê (Mestre Canjiquinha), Grupo Olodumaré (Mestre Camisa Roxa) entre outros. Pela primeira vez o capoeirista percebia a oportunidade de poder se profissionalizar e viver de sua arte, por conseguinte os grupos de capoeira criados a partir da década de 60 passaram a reproduzir partes desse espetáculo. Com o tempo, a falta de pesquisa, ausência da tradição oral e distanciamento dos antigos mestres causaram um processo de ACULTURAÇÃO nesses coletivos contemporâneos. Hoje é muito claro a confusão e FALTA DE FUNDAMENTO sobre as práticas de samba de roda e maculelê, por exemplo, em vários grupos que realizam apresentações nos dias de hoje.
O “Viva Bahia” produziu 3 LPs frutos de suas turnês e pesquisas. As gravações foram realizadas em 1968, em um espetáculo no Teatro Castro Alves, em Salvador. Estão todos disponíveis hoje no YouTube o volume 01, volume 02 e volume 03. As gravações procuraram manter a forma rítmica de cada manifestação da forma que foi transmitida pelos diversos mestres que participaram deste processo de construção. Por esse motivo, esse disco possui inestimável valor histórico, já que comprova como hoje se distorce vário folguedos de nossa cultura nacional.
A professora na década de 80, encerrou o Grupo Viva Bahia por divergências internas e se mudou para os EUA a convite do mestre Amém para fazer um projeto cultural, por lá ficou durante 10 anos. Realizou shows com grupos de capoeira lá já radicados (antigos componentes de turnê) e criou a Fundação YABÁS ARTE BRASIL em Woodstock-Nova Iorque, que era também um grupo parafolclórico composto por mulheres americanas e brasileira lá radicadas, aonde também fez composições para ballet e peças de teatro, aplicando os conhecimentos adquiridos através de pesquisas de música folclórica rural e urbana. Nos anos 2000 resolve voltar para o Brasil.
Em seus mais de 40 anos de atividade artística Emília Biancardi teve também o costume de colecionar instrumentos (tambores, flautas entre outros) sendo hoje a detentora do maior acervo de instrumentos indígenas brasileiros existente, ao todo são aproximadamente 500 peças, entre elas a FLAUTA URUÁ original dos povos da região do Xingu, que segundo a tradição, só pode ser tocada por homens, pois tem o poder de afastar os maus espíritos antes do Kuarup, a mesma tem sido reivindicada pelos povos da região, pois nem o tipo de madeira existe mais e a tradição do ritual está se perdendo. Todas essas peças podem ser vistas na exposição permanente “O SOM DOS ESQUECIDOS”, localizada no Centro Cultural SOLAR FERRÃO, em Salvador. A exposição é dividida em instrumentos indígenas (Fotos 07 e 08), tambores e instrumentos do mundo e hoje graças a um projeto da secretaria de cultura de Salvador também pode ser visitado virtualmente através do Link: http://www.colecaoemiliabiancardi.com.br/homeemilia.aspx#sobre.
Também escreveu livros registrando suas pesquisas. Eles são: “Cantorias da Bahia”, “Viva Bahia Canta”, “O Lindro Amô”, “Olêlê Maculelê” e “Raízes Musicais da Bahia” (Foto 9) sendo estes dois últimos considerados grande referência para pesquisas. Ela possui posicionamentos polêmicos como afirmar que foi sua responsabilidade a introdução do atabaque na capoeira contemporânea ou que a riqueza rítmica do candomblé brasileiro possui também influência portuguesa. De qualquer forma, a cultura popular brasileira deve muito a essa professora e ainda há de se fazer uma homenagem merecida.
Vida longa para a mestra !!!
André Luiz S. Marinho
(Contramestre de capoeira Angola e pesquisador de cultura popular)
Veja mais sobre cultura:
Instagram – @bondeangola
Facebook – André Marinho