Nesse mês de julho, além da comemoração dos 20 anos do Estatuto da Igualdade Racial, também comemora-se outra data importante para a história da resistência do povo negro. Há 96 anos morreu em 08 de julho de 1924, uma das maiores lendas da cultura popular brasileira, Manoel Henrique Pereira, mais conhecido como o capoeirista BESOURO DE MANGANGÁ, ou Besouro de Santo Amaro, cidade do Recôncavo aonde nasceu e viveu.
Nascido em aproximadamente 1895, sua lenda perdura até hoje e inspirou a realização do filme Besouro, escrito e dirigido por João Daniel Tikhomiroff, teve o personagem do capoeirista sendo protagonizado pelo ator Airton Carmo, que também é capoeirista, hoje Contramestre, e traz a perspectiva do mito criado em torno dele na região, o que não foi bem entendido pela comunidade da capoeira devido sua falta de preocupação com os fatos históricos.
Manoel teria aprendido capoeira com Mestre ALÍPIO, um respeitado negro dos engenhos de cana da região que ensinava os segredos da luta para as crianças, filhos de outros escravizados, no TRAPICHE DE BAIXO. Ganhou esse apelido de BESOURO, por causa da crença de que quando ele entrava em alguma embrulhada e o número de inimigos era grande demais, sendo impossível vencê-los, ele então se transformava em besouro e saía voando. Começava então surgir seu mito.
A fama dele começa a ser construída devido sua forma de enfrentar as injustiças que a população negra sofria na cidade pelos antigos fazendeiros e donos de engenho. Até hoje a oralidade da cidade mantém viva sua fama com os relatos que são transmitidos pelas gerações, como a contada por MESTRE SIDNEY de Santo Amaro sobre o costume de quando morria um comerciante da elite da cidade, havia a tradição de se fechar todo o comércio por luto. Uma vez, após a morte de um humilde comerciante conhecido pela população, foi organizado por Besouro uma homenagem a ele com um luto pela sua memória, as forças policiais quiseram proibir o fechamento, isso propiciou um grande confronto aonde as forças policiais foram colocadas para correr por Besouro.
Outra famosa confusão foi numa festa popular católica que ocorre na cidade até hoje. Havia uma procissão durante essa festa muito tradicional na cidade, quando a imagem da santa chegava de barco e era retirada pelos devotos e populares. Com o tempo, a festa cresceu e os políticos da região perceberam o seu apelo e começaram a tentar participar da festa. Houve um ano, que os políticos tentaram carregar a imagem também para se aproveitar da visibilidade da festa, Besouro não gostou e nesse dia proibiu o transporte. A polícia foi chamada e a festa acabou numa pancadaria, mais uma vez a polícia teve que sair correndo.
O antigo mercado popular da cidade também foi testemunha de vários atritos de Besouro e outros capoeiristas contra as forças policiais, quando essas tentavam proibir a Festa do BEMBÉ DO MERCADO, uma tradição de mais de 100 anos coordenada pelos terreiros da cidade. Assim, crescendo envolto a conflitos e escapando de tiros e facadas surge também o mito de Besouro ser um homem com corpo fechado.
Quando estava chegando na fase adulta, se alistou no Exército e prestou serviço militar em Salvador. Em 1918, foi expulso do Exército após se envolver numa briga dentro de uma delegacia, quando tentou recuperar seu berimbau que tinha sido apreendido na rua. Na briga a delegacia foi toda quebrada e um policial de nome ARGEU foi testemunha de acusação no processo. Depois de expulso do serviço militar trabalhou um tempo em um saveiro nas docas de Salvador, que se chamava “DEUS ME GUIE”.
Após um convite, voltou para trabalhar na sua cidade, numa fazenda como boiadeiro, logo um tempo receberia outro convite para trabalhar na USINA CINCO RIOS, no distrito de Maracangalha (famoso devido a música de Caymmi), na sua cidade natal. Chegou a ser uma das maiores da região e estava com um processo de tombamento como patrimônio cultural sendo efetuado pelo Instituto de Preservação Cultural do Estado, por além da importância histórica e arquitetônica era oriunda do Engenho Maracangalha fundado em 1757. Está desativada desde 1987, só restando ruínas, a exemplo de várias importantes construções históricas da região.
Besouro não imaginava o destino cruel que o esperava nesse local. Segundo a oralidade, a morte do capoeirista é envolta de muitos mistérios e várias versões, porém quase todas se referem a uma emboscada que ele teria sofrido na região da própria Usina, provavelmente fruto de uma vingança, após uma confusão (entre várias, uma versão seria sobre uma surra dada no filho de um fazendeiro). O administrador da fazenda participou do plano e induziu o próprio Besouro a dormir na Usina, enquanto o plano seria executado, no outro dia cercado por dezenas de homens teria sido morto por uma facada no intestino, através da famosa faca de TICUM, preparada para matar alguém de corpo fechado.
Segundo Mestre Macaco, outro respeitado mestre da região, Besouro era um ativista político. Reivindicava direitos e cobrava os salários atrasados, além de exímio capoeirista. Houve o intuito das elites locais de mudarem a visão sobre ele, pois sempre se incomodaram com sua postura e por muito tempo tentaram construir uma imagem de um desordeiro e criminoso. Outro fato que sempre foi difundido pela oralidade local foi a omissão no seu socorro, que ocorreu na SANTA CASA de Misericórdia da cidade de Santo Amaro. Para a população ele foi deixado para morrer e as memórias locais afirmam que suas vísceras ficaram expostas para quem quisesse ver e ele ainda teria sido enterrado como indigente do lado de for a do cemitério, era um aviso do que aconteceria com quem enfrentasse as elites locais. Seu ATESTADO DE ÓBITO foi encontrado pelo grande pesquisador ANTONIO LIBERAC.
A cultura da capoeira não deixou que se apagasse a memória desse homem defensor solitário de um povo e sua cultura. Também foram responsáveis pelo nascimento do mito seus discípulos e companheiros de luta. Entre eles podem ser citados COBRINHA VERDE, que sempre se declarou seu aluno e parente, POPÓ, parceiro de aventuras e propagador da cultura do Maculelê, DENDÊ (aluno), e NOCA DE JACÓ, outro famoso capoeirista e importante líder espiritual da cidade, que segundo a oralidade viveu mais de 100 anos.
André Luiz S. Marinho
(Contramestre de capoeira Angola e pesquisador de cultura popular)
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