Em 12 de maio há 37 anos falecia Rafael Alves França, ou mais conhecido como Mestre COBRINHA VERDE. Sua data de nascimento é uma incógnita, há divergências entre as datas de 1908 ou 1912, e foi um dos mais temidos e respeitados capoeiristas de sua época, apesar da pouca estatura. O apelido foi dado pelo seu mestre devido à sua agilidade e destreza com as pernas Trazia consigo os segredos das mandingas antigas dos negros de engenho do recôncavo baiano e as esquivas aprendidas com o lendário BESOURO DE MANGANGÁ, ou Besouro de Santo Amaro, o capoeirista mais famoso da Bahia. Sua lenda perdura até hoje e inspirou a realização do filme Besouro, escrito e dirigido por João Daniel Tikhomiroff, teve o personagem do capoeirista sendo protagonizado pelo ator Airton Carmo, que também é capoeirista, hoje Contramestre, e traz a perspectiva do mito criado em torno dele na região.
Nascido também em Santo Amaro da Purificação, considerada o berço da capoeira e do samba de roda da Bahia, afirmava ser um parente legítimo do lendário capoeirista Besouro Mangangá, mais precisamente seu primo. Foi com ele que aos quatro anos de idade se iniciou na arte da capoeiragem, mas também teve contato com outros capoeiras da região, conforme relatou em um livro de memórias:
” … O meu mestre verdadeiro foi Besouro, mas eu aprendi com muitos mestres em Santo Amaro. Vou dar o nome de um por um: Maitá (que gozou até um samba com o nome dele), Licuri, Joité, Dendê, Gasolina, Siri de Mangue, Doze homens, Esperidião, Juvêncio Grosso, Espinho Remoso, Neco Canário Pardo. Aliás, Neco Canário Pardo foi meu mestre de jogar facão. O meu mestre de jogar navalha no cordão, nas mãos e nos pés foi Tonha, apelidada de Tonha Rolo do Mar. É uma mulher. Ainda é viva e anda de facão na mão. Mora em Feira de Santana, no Tomba…”. (Livro Capoeira e mandingas, p. 12).
A história do Mestre Cobrinha daria outro filme. Suas vivências e andanças pela capoeira e pelo Brasil mostram os heróis brasileiros esquecidos e ignorados desse país. Aos dezessete anos, já era um exímio capoeirista e dominava as técnicas da navalhada e luta com facão como ninguém. Teve um sério atrito com os soldados e depois, posteriormente, com o próprio delegado da cidade, culminando numa surra dada em todo o pelotão pelo próprio. A autoridade chamava-se VELOSO, avô de Caetano Veloso e Maria Bethânia. Quando soube do ocorrido, sua família o recomendou sair da cidade, fugiu para Lençóis.
Chegando lá conhece o bando de HORÁCIO DE MATOS, que já tinha falecido e foi um famoso coronel do sertão baiano, chamado de “dono da Chapada de Diamantina” e idealizador do “CONVÊNIO DE LENÇÓIS” de 1920. Conheceu os revoltosos liderados por Getúlio e participou lutando pelo Exército na Revolução de São Paulo de 1932. Chegou a ser condecorado e voltou para Bahia, indo morar em Salvador aonde deu baixa, com o posto de 3º sargento. Na velha capital começou a trabalhar de pedreiro e nas horas vagas circular nas rodas de capoeira.
Em uma dessas aventuras contou que em certa ocasião, armado com um facão de 18 polegadas, enfrentou oito policiais que abriram fogo contra ele e com o dito facão conseguiu desviar todas as balas. Esta e muitas outras façanhas eram atribuídas não só à sua agilidade e destreza, mas também a algumas mandingas que só os baianos do recôncavo conhecem. Contava o mestre que essas mandingas foram ensinadas por um africano de nome PASCOAL que era vizinho de sua avó.
Começou a dar aulas de capoeira na Fazenda Garcia. Chegou a dividir os trabalhos com Mestre Pastinha, em sua academia, e nunca cobrou para ensinar a capoeira. Promessa feita por ele ao seu primo Besouro. Era conhecedor de várias rezas deixadas pelos negros de engenho, alguns africanos e sempre falava para seus alunos: ” … Não era só com a capoeira que eu me livrava dos meus inimigos. O bom capoeirista é mágico. Ele tem o poder de aprender boas orações e usar um bom breve, porque a capoeira não livra a gente de bala …” (Livro capoeira e mandingas, p. 17).
Em 1963, foi convidado pelo ator de cinema Roberto Batalin, para gravar um disco de capoeira, junto com os mestres Traíra (famoso capoeirista aluno de Waldemar) e Gato Preto (que foi seu aluno). Este disco foi um dos primeiros do gênero e é considerado uma obra prima da capoeira pelos pesquisadores. O LP gravado dentro do barracão de Waldemar, num quarto aonde ele guardava seus berimbaus, teve texto escrito por DIAS GOMES, desenhos de Caribé, várias fotos dos capoeiristas da época, entre eles do próprio Cobrinha, feitas por SALOMÃO SCLIAR e MARCEL GAUTHEROT e foi editado na casa Xauã, no Rio de Janeiro. Com o golpe militar teve que ser feita uma nova edição e o nome do escritor retirado da obra, devido seus posicionamentos políticos, este disco recebeu o nome de “Mestre Traíra Capoeira da Bahia”.
O Mestre foi o responsável por fazer essa ponte entre a capoeiragem de Salvador, cidade que estava se tornando cosmopolita, e a do recôncavo, dos engenhos de açúcar, fazendas de cacau, rural e primitiva. Conhecedor de mandingas ensinou rezas, a arte da navalha e difundiu a lenda de Besouro nas rodas de capoeira da cidade, além de ter liderado uma famosa roda também numa localidade chamada CHAME-CHAME. Dizia o mestre que possuía um patuá com poderes mágicos, que poderia livrá-lo de inimigos e de algumas situações críticas, quando se metia em alguma confusão. Dizia também que esse patuá era vivo e que ficava pulando, quando era deixado num prato virgem. Mas um dia o patuá foi embora por causa de um erro que o mestre havia cometido. Foi um dos poucos conhecedores do jogo de “Santa Maria”, toque onde os capoeiras jogavam com navalhas entre os dedos dos pés e chegou a ser o mais antigo capoeirista em atividade.
Muito do misticismo e da mandinga da nova capoeira do século XX, deve-se a esse mestre. Deixou uma importante linhagem que mantém seu legado até hoje através dos alunos de Mestre GATO PRETO (in memorian), Mestre ROQUE (RJ), Mestre DENDÊ (in memorian), Mestre NOCA DO JACÓ (in memorian) e Mestre MARCELINO “MAU”.
André Luiz S. Marinho
(Contramestre de capoeira Angola e pesquisador de cultura popular)
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