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Madame Satã – o rei da Lapa

Mme com chapéu

” … Brigar eu não brigo porque eu nunca briguei, mas na minha casa a gente come o que Deus dá e o que faltar Nossa Senhora inteira….”
(Madame Satã, entrevista para o Pasquim em 1971).

No último dia 12 de abril, há 44 anos, morria João Francisco dos Santos. Nascido em Glória do Goitá, no dia 25 de fevereiro de 1900, filho de Manoel Francisco dos Santos e Firmina Teresa da Conceição teve 16 irmãos e veio de uma família muito humilde, era neto de escravos e via a fome e miséria como destino certo em sua cidade. Foi vendido em troca de uma égua para um negociante local, S. Laureano, que o levou para o Recife para cuidar de cavalos.

Em uma viagem até a Paraíba, conheceu uma senhora chamada Dona Felicidade e aceita o convite para fugir para o RJ, mas diferente de seu nome encontrou só tristeza trabalhando numa pensão aberta por ela de nome “ITABAIANO”. Passava os dias lavando roupas e limpando o espaço sem receber salário, sem estudar e sem dia de descanso. Isso se estendeu até os 13 anos de idade, quando ele resolveu fugir e morar nas ruas e nelas foi aonde se passou grande parte de seu aprendizado. Foi vendedor ambulante, garçom, cozinheiro e fez serviços de faxina nos vários bordéis da Lapa e neles descobriu sua homossexualidade, sua convivência entre mulatas, polacas e francesas o aproximou cada vez mais desse universo feminino.

Talvez essa seja a fase menos conhecida, porém não menos interessante do então jovem João, pois na “escola da malandragem” conviveu com os bambas da sua região como SATURNINO, MEIA-NOITE, CAMISA PRETA, BETO-BATUQUEIRO, GAVIÃO, MIGUELZINHO, PEDRINHO DO CATETE, BRANCURA (sua grande paixão) e aquele ao qual ele sempre se reportava como seu mestre e protetor, o valentão (e provavelmente capoeirista, pois foi capadócio na Bahia) SETE COROAS, que teria lhe ensinado tudo sobre “o jogo, a navalha, o papo, a rasteira e a valentia”, de acordo com ROGÉRIO DURST, pesquisador que escreveu um livro sobre ele cuja obra teria inspirado Chico Buarque escrever “A ópera do malandro”.

A noite da Lapa da década de 20 e 30 do século passado era movimentada por jovens atrás de sexo, funcionários públicos, jornalistas, intelectuais,, ladrões, boêmios e nomes famosos da música como Cartola, Nelson Gonçalves, Zé Keti, entre outros. Através da atriz SARA NOBRE ele entra no circuito alternativo de teatro, antigo desejo desde a turnê da companhia de dança francesa BATACLAN na cidade, e inicia suas performances criando os personagens: “Mulata do Balacochê”, “Jamacy” e “Gato Maracajá”. Era um homossexual assumido, mas nunca admitiu desrespeitos e ofensas e por esse motivo se envolveu em várias brigas, ficando famoso por seu poderoso murro de esquerda, que lhe deu a alcunha na época de “Caranguejo”, seu primeiro apelido.

O ano de 1928 mudaria sua vida ao avesso quando voltando de uma apresentação se envolveu numa confusão com um vigilante noturno chamado de Alberto, que o chamou de “VEADO” num café, aonde ele lanchava antes de ir para casa. O malandro respondeu ao desaforo e se iniciou uma briga, após tomar uma pancada com cassetete no rosto, sacou uma arma e o matou, passando a ser condenado a 16 anos cumpriu 2 anos no Presídio da ILHA GRANDE e foi absolvido por legítima defesa. Sua vida nunca mais seria a mesma, tendo escapado de duas emboscadas feitas pelos irmãos do policial falecido. Preto, pobre, malandro e homossexual João não teria mais espaço nos palcos de teatro da cidade e teve que ganhar a vida realizando um novo tipo de serviço ao qual passou a ser solicitado, “segurança das casas de tolerância” e bares do bairro ou LEÃO DE CHÁCARA, como se chamava popularmente. Na década de 30, Caranguejo é o maior protetor das “bichas”, prostitutas e comércio do bairro da Lapa com sua camisa de seda, calça fina, tamanco, anéis enchendo os dedos, chapéu Panamá (sua marca registrada) e navalha no bolso, as brigas se tornam parte do seu dia a dia. Aceitava como pagamento dinheiro, refeições e cafés, por isso sempre foi muito querido pelos comerciantes da região. Também foi nesse período que ganhou o apelido que o acompanharia até a sua morte.

Em 1938 participou do concurso de fantasias do baile de carnaval no Teatro República, próximo da praça Tiradentes, representando o bloco de carnaval de rua CAÇADORES DE VEADOS, criado por outros gays amigos seus e era a oportunidade deles travestirem-se com roupas vistosas para as festas de carnaval. Era realmente um desfile que atraía turistas de todas as partes do Brasil e de países estrangeiros. Os concorrentes ganhavam prêmios bons e destaques nos jornais, João se fantasiou de morcego e foi campeão com ampla cobertura da imprensa. Dias depois foi detido andando no Passeio Público e levado para averiguação na delegacia da área, junto com outros companheiros. Lá foi reconhecido pelo Comissário de Polícia e como não quis dar seu nome foi fichado com a “alcunha” de MADAME SATÃ, nome de um filme que passava nos cinemas da cidade na época de Cecil B. DeMille, o apelido pegou.

A oralidade carioca eternizou alguns momentos ainda pouco explorados como suas brigas com Osvaldo Nunes e Nelson Rodrigues, que já foi pugilista (consideradas lendárias), também quando foram chamadas 8 (oito) viaturas do Batalhão do Choque da PM (na época chamadas de “Socorro urgente”) para contê-lo e prendê-lo, pois tinha batido em mais de 8 policiais, além da infeliz noite que GERALDO PEREIRA quis “tentar a sorte” e conheceu o famoso soco de canhota do caranguejo que o levou a morte, entre outras.

Na boêmia, além da malandragem conviveu e fez amizade com muitos artistas que integraram a Era de Ouro das rádios nacionais, dentre os quais Chico Alves, Noel Rosa, Orlando Silva, Vicente Celestino e Aracy de Almeida.
Na cadeia, afirmava ter convivido com muitos presos famosos na época como Feliciano e Febrônio Índio do Brasil e os famosos Gregório (segurança do presidente Getúlio Vargas) e Luís Carlos Prestes.

Após sair de sua última prisão, em 1965, Satã decidiu abandonar a Lapa e permanecer em Ilha Grande. Nessa época, ele trabalhava como cozinheiro em casas de família e até mesmo fazia faxinas nas casas de ex-policiais e funcionários. Em 1971 concedeu uma polêmica entrevista a o jornal “O PASQUIM”, que se dedicava a contracultura brasileira, numa forma rebelde de enfrentar a Ditadura Militar e possuía uma tiragem mensal de 200 mil exemplares. O jornal publicou outra após sua morte.

A entrevista se torna um verdadeiro ensaio etnográfico sobre os modos de viver e sobreviver na malandragem carioca da década de 20 e 30. Após o sucesso da entrevista, foi convidado a escrever um livro de memórias (“MEMÓRIAS DE MADAAME SATÔ pela Editora Lidador) por Sylvan Paezzo, o livro foi publicado em 1972. Voltou a fazer parte de peças de teatro e shows, abrindo portas para novos talentos como Tânia Alves e Elba Ramalho, mas um pouco tempo depois retornou para Ilha Grande, dizia que aquela Lapa da década de 70 já não o encantava mais: “… guardei minha querida Lapa do meu tempo no meu peito …”. Na verdade, o bairro estava em franca decadência e foi perdendo status de bairro boêmio para a nova Copacabana, a partir da década de 50.

Em 1974, foi lançado o filme “RAINHA DIABA”, que conta a vida de um transformista marginal, interpretado por Milton Gonçalves, inspirado nele e, em 2002, foi lançado o filme “Madame Satã”, drama biográfico com Lázaro Ramos no papel principal. Em 1990, foi tema do enredo da escola de samba Lins Imperial e recebeu várias outras homenagens pela televisão.
Infelizmente, em fevereiro de 1976, Madame Satã foi encontrado internado em um hospital em Angra dos Reis, um município situado no sul do Rio de Janeiro, como indigente, Jaguar (cartunista e jornalista do “O Pasquim”) o resgatou e o transferiu para um hospital na Zona Sul do Rio de Janeiro, no bairro de Ipanema. Mesmo assim ele morreu após ter complicações de um câncer no pulmão. Alguns dizem que também ele era portador de HIV. No dia 12 de abril de 1976, Madame Satã foi sepultado na Vila do Abrãao, na Ilha Grande, lugar escolhido para morar e passar seus últimos anos, aonde era muito requisitado como cozinheiro e também para contar seus “causos”, inacreditáveis para muitos !!!

É considerado o último malandro da Lapa, imbatível com a navalha na mão, um dos “marginais” mais famosos do país. Respondeu a 28 processos criminais, sendo absolvido em 19 (entre eles 3 homicídios, 13 agressões e 4 resistências a prisão, além de outros delitos menores).

Sempre ficarão no ar vários questionamento sobre a vida do velho malandro, se ele vivesse nos dias de hoje, seria marginal ou artista nacional ? Hoje ele conseguiria fugir dessa sina do submundo, destino das classes sociais mais pobres ? Não teria ele pagado o preço, por ter sido símbolo de uma silenciosa “resistência” social, Como ser um homossexual assumido, na década de 20 do século XIX? Ser um negro que não abaixava a cabeça para o racismo? Fugir do estereótipo desejado pela política de Vargas?

Sua sombra ainda paira nos Arcos da Lapa e nos because da velha cidade ex-maravilhosa !!!!

André Luiz S. Marinho

(Contramestre de capoeira Angola e pesquisador de cultura popular)

Veja mais sobre cultura brasileira em:

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