É comum se dizer que no Brasil, o ano só começa após o carnaval. Exageros à parte, pois as contas não esperam tanto para chegar rsrrs, realmente o carnaval está dentro da cultura brasileira com seus personagens e mitos, assim como o sangue nas nossas veias. Entre seus marcantes personagens, há um que possui duplo simbolismo por representar a essência do samba e também a resistência da capoeira, ele é o MESTRE-SALA.
A história de sua origem começa bem longe, nos meados de 1872, quando chega da Bahia o pernambucano, HILÁRIO JOVINO, também chamado de LALÚ DE OURO. Morou no morro da Conceição, comunidade próxima da Central do Brasil. Aqui conheceu uma manifestação muito marcante nas ruas da cidade chamada Rancho que sempre desfilava no dia de Reis, lembrando muito a tradição do TERNO DE REIS que havia na Bahia. Amante dessa tradição se encantou com o DOIS DE OURO, antigo rancho da região e resolveu criar um para desfilar com sua família e o chamou de REI DE OUROS, em 1893, mas para não dar confusão decidiu que ele só desfilaria depois, na data do carnaval, naquele momento se criava o primeiro RANCHO CARNAVALESCO da cidade. Diferente dos CORDÕES que já existiam no carnaval, aonde sempre havia brigas e repressão por parte da polícia, seus primeiros anos se resumiram em encontros dentro das casas dos parentes e vizinhos. A ideia agradou aos moradores do bairro e, posteriormente, ele também ajudou na fundação dos Ranchos Rosa Branca e em seguida, o Botão de Rosa. Foi o fundador também em 1899, do rancho “A jardineira”, Riso Leal, Reino das Magnólias e o mais famoso de todos, o AMENO RESEDÁ.
O Reis de Ouro apresentou novidades que até hoje permanecem, como a ideia de enredo, o uso de instrumentos de corda e de instrumentos africanos, como pandeiros, tantãs e ganzás. Por mais que as festas de rua fossem criminalizadas, as autoridades gostaram do Reis de Ouro, devido sua organização, e no ano seguinte à sua fundação o rancho chegou a desfilar diante do presidente Deodoro da Fonseca. O apreço do presidente não tirou os desfiles da marginalidade, e Hilário foi preso algumas vezes. Nessa fase embrionária do carnaval, Hilário se torna um personagem central, ao tentar levar uma manifestação cultural popular do “gueto” para o “asfalto”. Estrategicamente ele sempre buscava a inserção social para ele e seus pares, foi um dos primeiros a solicitar autorização policial para o rancho desfilar, procurou guarida na Guarda Nacional, entrando em seus quadros posteriormente, faz contatos políticos que lhe proporcionaram uma rede de proteção e para muitos pesquisadores foi pioneiro nesse esforço de transformar o carnaval dos Ranchos em um gênero de massas, lembrando que ainda não podemos falar de samba-enredo, pois o gênero musical que prevalecia era o maxixe. Essa mudança só ocorreria com a Turma do Estácio, a partir de 1920.
Esses Ranchos do final do século XIX, tinham como destaque seus estandartes, herança do Terno de Reis, que traziam seu nome, símbolo e cores e seus desfiles íam até a redação do Jornal do Brasil, localizada na antiga Avenida Central (atual Av. Rio Branco) e passavam pela Praça XI, reduto das referências culturais da cidade, a chamada “Pequena África”. Com o tempo se iniciou um costume de receber coroas de flores dos donos de funerárias da região, comerciantes endinheirados e respeitados, elas eram dadas para os Ranchos mais bonitos. A disputa por essa coroa teria sido o início das rivalidades entre os ranchos, segundo o pesquisador Tinhorão.
Hilário cria uma forma de proteger o estandarte de seu tradicional rancho, que sempre era muito cobiçado no carnaval e criou os cargos de BALIZA (atual mestre-sala) e PORTA-MACHADO. O baliza passa a ser um misto de sambista e segurança que ficava sempre do lado do porta-estandarte, na época também um homem. Todos devidamente municiados com suas navalhas e atentos a festa e aos ataques. Lógico que tanta responsabilidade não poderia ser entregue a qualquer um. Os CAPOEIRISTAS tradicionalmente ficavam com essa missão e no caso do Reis de Ouro o próprio Hilário se nomeou, afinal ele juntava todos esses requisitos. Os porta-machados seriam um “disfarçado” reforço que também ficava em volta, caso o clima esquentasse, ou seja, outros capoeiristas, ou valentões, como se dizia na crônica da época.
Sua dança e vestimenta, segundo pesquisadores já eram diferentes na época, pois como ele tinha que dançar em volta do estandarte, sem tirar o olho do entorno passa a seguir os passos do minueto, ou inspirados nele, outro legado do passado, pois os negros das fazendas gostavam de imitar as danças dos brancos, comuns nas festas da época da colônia. Hilário é outro personagem de nossa cultura brasileira que precisa ser mais estudado, ensinado nas escolas e conhecido mundo afora.
Ainda há rumores que seria também dele a autoria do samba “Pelo Telefone”, de autoria atribuída somente a Donga, junto com Sinhô e Tia Ciata.
Obs: Na foto, ele está de casaca preta no centro.
André Luiz S. Marinho
(Contramestre de capoeira Angola e pesquisador de cultura popular)
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