Nesse mês de outubro marca a data de nascimento há 104 anos de um dos maiores ativistas culturais que a Bahia já teve, o famoso Camafeu de Oxóssi. Seu nome era Ápio Patrocínio da Conceição, mas ficou conhecido pelo seu apelido, CAMAFEU, que é uma espécie de jóia em formato de pedra talhada, usada pelas senhoras da sociedade para prender a gola de seus vestidos. Geralmente esse broche tinha como principal atrativo uma figura em relevo do rosto de uma senhora ou do seu esposo. Conta a oralidade que o jovem Ápio ao tropeçar na rua caiu e encontrou uma dessas jóias, ele achou tão linda que passou a usar, ganhando assim o apelido. O complemento com a palavra OXÓSSI foi introduzido por ele mesmo, pois é o orixá do panteão iorubá do qual ele era filho. Impossível falar da Bahia da segunda metade do século XX, sem citá-lo.
Sua vida de tão agitada merecia um livro. Foi órfão de pai muito cedo e teve que ajudar a mãe a criar dezesseis irmãos. O menino aprendeu a se virar nas ruas do Maciel (atual Pelourinho). Estudou na Escola de Artífices e lá mal aprendeu a ler e escrever teve que abandonar os estudos para virar vendedor ambulante nas proximidades do Elevador Lacerda e Mercado Modelo. Depois virou engraxate. Menino esperto que era fez amizade com o pessoal das docas, tornando-se estivador na adolescência.
Na rua aprendeu também a capoeira e arte de tocar berimbau com os velhos mestres. Frequentava as rodas de capoeira da cidade e chegou a ser considerado um dos melhores tocadores de berimbau de Salvador, junto com Mestre Gato. Já na fase adulta, o jovem Ápio montou a famosa barraca “São Jorge”, que na Bahia possui sincretismo com Oxóssi, seu protetor, no antigo MERCADO MODELO, na Praça Cairu, aonde vendia artigos regionais para turistas, tocava berimbau e compunha afoxés, sua barraca se tornou um verdadeiro espaço de referência cultural da cidade e foi frequentado por muita gente famosa, acadêmicos e artistas. Chegou a ganhar de presente do famoso pintor Carybé quatro placas pintadas para enfeitá-la, as quais ele não vendia por preço nenhum. Era uma grande atração do mercado que reunia cerca de 200 vendedores. Quando Mercado pegou fogo, em 1969, ele, já uma personalidade pública, ganhou do então Prefeito de Salvador, ACM (Antônio Carlos Magalhães), a concessão para um restaurante no novo mercado construído na cidade baixa, sua inauguração foi em 1971. Rapidamente se tornou um pólo gastronômico aonde se poderia provar a autêntica culinária baiana e ouvir um pouco de suas famosas histórias sobre a cidade e personagens ilustres das ruas, ninguém conhecia Salvador como ele. Assim ele repete o sucesso da sua barraca do antigo mercado e volta a receber artistas, políticos, turistas, transformando seu restaurante numa referência cultural soteropolitana. O Restaurante existe até hoje, no segundo andar chamado “Camafeu de Oxóssi”, hoje ainda é um dos pontos turísticos da cidade.
Em 1961, ele fez parte da primeira turma de estudo do idioma ioruba, criado na UFBA (Universidade Federal da Bahia), que se formou em 1964, com duas aulas por semana ministradas por um professor nigeriano chamado Benese Lasebikan de Tundê, tornou-se um dos poucos com fluência no idioma na cidade. Soube utilizar esse conhecimento para compor seus afoxés e cantigas de capoeira. Na viagem para Dakar, no Senegal, no I Festival de Artes Negras, da qual ele fez parte junto com Mestre Pastinha e outros capoeiristas de Salvador, em 1966, foi o único que conseguia se comunicar com as outras delegações. Foi lá que ele fez uma famosa apresentação junto com a lendária OLGA DO ALAKETU, também integrante da comitiva, para aproximadamente 10 mil pessoas, no final foram aplaudidos de pé.
Em 1967, foi lançado seu primeiro LP “BERIMBAUS DA BAHIA”, ao qual não ganhou nenhum centavo da gravadora Continental e depois, em 1968, só no segundo LP gravado pela Philips é que teve seu valor reconhecido, sendo pago pela sua obra. Também dividia sua vida de comerciante com o de responsabilidades no Terreiro de candomblé “Ilê Axê Opô Afonjá”, um dos mais antigos da cidade, aonde recebeu das mãos da famosa Mãe Senhora o cargo de OBÁ DE XANGÔ, uma honraria dentro daquela casa dado aos seus protetores. Era muito querido pelas principais mães de santo da cidade e costumava nas suas festas sempre entonar antigas cantigas iorubanas em homenagem às matriarcas. Além disso, o já internacional Camafeu, ainda seria escolhido pelo destino para uma última missão cultural, presidir o Afoxé Filhos de Gandhi, que não desfilava devido a uma crise financeira desde 1973. O Afoxé anos depois mudaria sua gestão e se tornaria no fenômeno de massas que é hoje.
Camafeu de Oxóssi, devido a suas muitas qualidades, tornou-se um ícone da cidade de Salvador, capital do estado da Bahia. Ele é citado em diversas músicas (cantadas por Martinho da Vila, Grupo Originais do Samba, Candeia, entre outros. Todos disponíveis no You Tube) e livros que retrataram a cidade na segunda metade do século XX. Jorge Amado teria se inspirado nele para criar personagens em pelo menos quatro obras: Teresa Batista, Tenda dos Milagres, Dona Flor, Tieta do Agreste e Bahia de todos os santos.
Faleceu em 1994 vítima de um câncer. Seu enterro no Cemitério da Ordem Terceira do São Francisco parou a Bahia e contou com a presença de vários amigos e admiradores daquele que era uma das maiores autoridades da cultura afro-brasileiro.
André Luiz S. Marinho
(Contramestre de capoeira Angola e pesquisador de cultura popular)
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