No final do último mês de Maio, fez 23 anos que morreu o senhor José Datrino, mais conhecido na oralidade carioca urbana como PROFETA GENTILEZA.
Desde sua infância José Datrino era possuidor de um comportamento atípico. Por volta dos treze anos de idade, passou a ter premonições sobre sua missão na terra, na qual acreditava que um dia, depois de constituir família, filhos e bens, deixaria tudo em prol de sua missão. Este comportamento causou preocupação em seus pais, que chegaram à suspeitar que o filho sofria de algum tipo de loucura, chegando a buscar ajuda em curandeiros espirituais. Fugiu sem avisar para o Rio de Janeiro, aonde casou-se, virou dono de uma transportadora e teve 5 filhos. No final do ano de 1961, aconteceria um fato que afetaria todo o pais e mudaria a vida de José para sempre.
No dia 17 de dezembro, ocorreu a TRAGÉDIA DO GRAN CIRCUS NORTE-AMERICANO, em Niterói, capital do Estado do Rio de Janeiro na época, no local onde hoje fica a Policlínica da Polícia Militar. Considerada uma das maiores fatalidades do mundo circense. Neste incêndio morreram mais de 500 pessoas, a maioria crianças, e 800 ficaram feridas. No dia havia aproximadamente 3000 pessoas e o incêndio foi causado por motivos de vingança de um ex-funcionário. A lona de algodão revestida de parafina teria facilitado a propagação do fogo. Os números desse triste episódio surpreendem até hoje, no Estádio Caio Martins foi improvisado uma oficina de marcenaria com carpinteiros da região para a fabricação de urnas fúnebres e foi construído um cemitério às pressas em São Gonçalo para desafogar o do Maruí, em Niterói, por falta de espaço para as novas sepulturas. Como não havia a tecnologia de identificação de hoje, a maioria dos corpos não foram reconhecidos sendo enterrados em covas coletivas. A tragédia só não foi maior devido à elefanta SEMBA, que assustada soltou-se de suas correntes e fugiu arrastando toda a estrutura da lona em chamas com ela abrindo um grande buraco, por onde fugiu a plateia, acuada pelas chamas. Até hoje é proibido a entrada de Companhias de Circo na cidade de Niterói, que ainda vive essa triste memória.
Na antevéspera do Natal, seis dias após o acontecimento, José acordou alegando ter ouvido “vozes astrais”, segundo suas próprias palavras, que o mandavam abandonar o mundo material e se dedicar apenas ao mundo espiritual. O Profeta pegou um de seus caminhões e foi para o local do incêndio plantou jardim e horta sobre as CINZA DO CIRCO e decidiu morar no local durante quatro anos, a região tinha se transformado num enorme local de orações, peregrinações e romarias. Lá, José Datrino incutiu nas pessoas o real sentido das palavras “Agradecido” e “Gentileza”. Foi um CONSOLADOR voluntário, que confortou os familiares das vítimas da tragédia com suas palavras de bondade. Daquele dia em diante, ganhou o apelido de “José Agradecido”, ou “PROFETA GENTILEZA”.
A partir de 1970 percorreu toda a cidade. Era visto em ruas, praças, nas barcas da travessia entre as cidades do Rio de Janeiro e Niterói, em trens e ônibus, fazendo sua pregação e levando palavras de amor, bondade e respeito pelo próximo e pela natureza a todos que cruzassem seu caminho. Andava pela Zona Central com uma túnica branca e longa barba tornando-se uma dessas figuras conhecidas das ruas, um pregador urbano. Aos que o chamavam de louco, ele respondia: – “Sou maluco para te amar e louco para te salvar”. O Profeta Gentileza, também oferecia, em gesto de gentileza, flores e rosas para as pessoas que cruzavam seu caminho nas ruas do Rio de Janeiro. Uma delas uma vez foi a cantora MARISA MONTES, que depois fez uma música em sua homenagem.
Foi internado três vezes em hospitais psiquiátricos, segundo relato dos funcionários, conseguia fazer com que outros pacientes ficassem ao seu redor ouvindo suas palavras transformando o ambiente manicominial. Os médicos se negavam a lhe aplicar o tratamento de choque sempre lhe dando alta em seguida, logo após suas internações.
Suas pregações também contiam críticas a Igrejas e líderes religiosos pela cobrança de dinheiro aos fiéis, aos políticos pela corrupção e a ambição do homem moderno. A partir de 1980, escolheu 56 PILASTRAS do Viaduto do Gasômetro, que vai do Cemitério do Caju até o Terminal Rodoviário do Rio de Janeiro, numa extensão de aproximadamente 1,5 km, para registrar sua filosofia de vida. Ele encheu as pilastras com inscrições em verde-amarelo propondo sua visão de mundo que enaltecia também o amor, natureza, gentileza, espiritualidade e outros princípios. Tornaram-se famosas por todos que ali passavam para a Rodoviária ou para Av. Brasil. Segundo o prof. Leonardo Guelman que lhe dedicou um rigoroso trabalho acadêmico as frases foram ali colocadas estrategicamente como se fosse um roteiro de boas condutas para quem chegasse na cidade.
Com sua morte, em 1996, os murais foram sofrendo com a deteriorização e vandalismo até serem apagadas pela própria Prefeitura o que causou críticas e consternação por toda a cidade. A Prefeitura junto com uma iniciativa da UFF iniciou um processo de restauração das mensagens e de TOMBAMENTO como patrimônio cultural que se concretizou em 2000. No final do mesmo ano foi publicado pela EdUFF (Editora da Universidade Federal Fluminense) o livro Brasil: Tempo de Gentileza. A obra introduz o leitor no “universo” do profeta contando sua trajetória, sua estilização de seus objetos, de sua caligrafia singular e os painéis. Em 2001, foi a vez do samba homenageá-lo, num enredo do famoso carnavalesco Joãozinho Trinta, através da Grande Rio.
A última grande ameaça a sua obra foi a demolição do viaduto do Gasômetro, no governo do Prefeito Eduardo Paes, aonde se encontra as pilastras. Em um acordo com a Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro (Cdurp), que coordenou a obra do Porto Maravilha as obras acabaram sendo preservadas em seus locais originais e somente a Perimetral foi demolida, não afetando as partes onde estão as mensagens. Hoje pode ser considerado um local de visitação !!!
No atual ambiente político de ódio e estupidez que o país vive, nunca foi tão necessário falar de Gentileza, pensar o Gentileza e praticar gentilezas !!!
Viva o Profeta poeta.
“Gentileza gera gentileza” era sua frase mais conhecida.
André Luiz S. Marinho
(Contramestre de capoeira Angola e pesquisador de cultura popular)
Veja mais sobre cultura brasileira seguindo:
Instagram – @bondeangola
Facebook – André Marinho